sábado, 3 de janeiro de 2009

Por uma consciência pan-africana

A história negra contra a dominação branca em todo o mundo sempre trilhou por dois caminhos. Ou o caminho da integração do povo negro na sociedade dominante (branca), ou o caminho pela libertação do povo negro desta sociedade (autodeterminação racial). Este último caminho é o que caracteriza elementarmente a história do internacionalismo negro, ou, em outras palavras, do pan-africanismo.

No Brasil, as ações racistas da elite branca sempre foram de controlar a nossa comunidade, tanto fisicamente (através do extermínio e da miscigenação compulsória), quanto ideologicamente. Assim, é que as ideologias libertárias do povo preto, oriundas do movimento pan-africanista, sempre foram controladas pelos brancos para não permearem solo brasileiro e influenciarem diretamente a luta do povo preto, visto que aqui existe uma imensa maioria de pessoas de origem africana, podendo assim incentivar estas a uma tomada de posição ideológica e política com vistas à concretização de um estado nacional negro.

A ação racista dos brancos, através do poder de controle ideológico, chegou influenciar significativamente os rumos ideológicos do movimento negro aqui no Brasil, sendo que a nossa referência de luta, em uma intensidade extraordinária, devida em parte a manipulação branca, está no movimento integracionista negro oriundo da história dos “Direitos Civis” dos irmãos e irmãs nos Estados Unidos, sendo raras as organizações e militantes que compreendem a questão racial de forma diferente. O controle ideológico por parte dos racistas não permitiu a difusão maciça, no seio "afro-brasileiro”, do outro lado ideológico da nossa luta internacionalista. Por isso, as ideologias da autodeterminação consciente (libertação negra), da auto-gestão negra (a comunidade negra fazendo por ela mesma e criando suas instituições sociais), do internacionalismo negro (solidariedade e unidade negra mundial) e do Poder Negro, surgidas no seio do movimento negro contemporâneo, sempre foram boicotadas.

Por conseqüência desse boicote ideológico patrocinado pelos racistas, e pela sua investida em direcionar ideologicamente nossa gente pelo caminho da submissão, acredito que o(s) movimento(s) negro(s) no Brasil, no geral, só trilha por um caminho: o da legitimação do Poder Branco e da consolidação do sistema branco de exploração do homem pelo homem. A reprodução dos discursos de uma democracia anti-revolucionária, de concepção branco-dominante e burguês-exploratória, no nosso meio, é um elemento alienante das nossas lideranças e organizações, que acreditam ingenuamente que só por uma interpelação moral aos “donos do poder” iremos modificar as estruturas básicas das relações humanas da sociedade capitalista, criando uma sociedade justa e equilibrada.Esse discurso de “busca por uma democracia perfeita”, onde todos os grupos sociais teriam oportunidade na sociedade e no poder estabelecido, que se abate sobre toda comunidade, nada mais é do que uma nova ideologia de dominação para alienar e sufocar os movimentos subversivos, pois as pessoas estão cerceadas pela ideologia de que vivemos numa sociedade democrática onde as leis e o estado garantirão o bem comum.

Mas como sabemos, o estado é feito por homens, e estes são alimentados pela ideologia da exploração do homem pelo homem, utilizando-se dos aparelhos daquele para promover a supremacia e dominação dos históricos opressores. Assim, os algozes preferem difundir “a ideologia da esperança”, ou seja, “da democracia perfeita”, na consciência dos oprimidos, para confortar os seus corações, para depois agirem contrariamente ao que é pregado ideologicamente, consolidando novos mecanismos de dominação e exploração, enquanto os grupos oprimidos acreditam que no futuro as coisas vão melhorar para todos dentro deste modelo de sistema enganador.Por isso, penso que nós não devemos sustentar mais estes discursos. Consequentemente, devemos nos livrar das ações que concretizam esses ideais. Em contraponto, precisamos dar um novo redirecionamento ideológico para o(s) movimento(s) negro(s), para que possamos ter alternativas de lutas viáveis, e que possibilitem de fato a melhoria de todas as pessoas pretas. Assim, indico o pensamento pan-africanista como uma alternativa ideológica para trilharmos o caminho da construção de uma verdadeira sociedade democrática e justa para todos. Marcus Garvey no ensinou que: “a confiança de nossa raça no progresso e realizações dos outros na expectativa de obter simpatia, justiça e direitos é como dependermos de uma bengala quebrada, onde o apoiar-se nela significaria uma eventual queda no chão”. E complementa: “no dia que a raça negra descobrir o poder que tem, a força que possui, no dia seguinte este mundo estará mudado”.

A meu ver, a falta de uma consciência pan-africanista é um dos grandes entraves para concretização de um movimento negro de massas no Brasil e que agrupe em seu seio uma ideologia de luta anti-racista libertária. O desconhecimento da ideologia pan-africanista não representa apenas o desconhecimento formal do movimento internacionalista negro, mas, acima de tudo, o desconhecimento das histórias de lutas dos povos de origem africana pela libertação racial em todo globo.Um dos vários símbolos de luta libertária pan-africanista que consolidou de fato suas ideologias foi à formação, em toda a história negra contra a escravidão, dos quilombos. Estes não só representavam comunidades de negros e negras fugidos como nos ensina a ideologia educacional branca. Acima de tudo, as formações de quilombos representaram à negação do sistema opressor, a não submissão à exploração do homem pelo homem, ou seja, a não submissão dos povos negros a exploração branca.Ainda, os quilombos, como símbolo de resistência e ação pan-africanista, significaram um processo de ruptura com o modelo político, social e econômico injusto dos brancos e o restabelecimento de um modelo político, social e econômico que satisfizessem as necessidades das massas negras (poderíamos afirmar que aqui existiu a primeira experiência do comunalismo negro).

Ainda, a história quilombola representou a consolidação dos princípios da solidariedade e unidade negra com vistas à liberdade racial, pois a partir daí as gentes negras possuíam “em suas mãos” o poder de controlar seus próprios destinos. Um olhar interpretativo, não contaminado com o racismo ideológico branco, dos movimentos quilombolas ao redor do mundo, nos permite compreender que ninguém além de nós mesmos, negros e negras, devemos e podemos fazer algo por nós mesmo, e consequentemente transformar nossas condições de vida na sua essência através da nossa auto-determinação consciente.Que o povo preto não deve esperar por uma interpelação moral e espiritual aos seus algozes para abolir e livrar-se de um sistema explorador que os predestina à eterna subserviência e escravidão. A consciência pan-africanista permite-nos adquirir um auto-respeito, uma auto-imagem positiva, uma noção de pertencimento completo ao povo negro, sem os vícios do nacionalismo imposto.Ainda, permite-nos sermos criativos diante de uma dificuldade aparentemente insuperável.

A ideologia pan-africana é a ideologia da solidariedade e unidade internacional negra, do poder negro, da liberdade e do amor incondicional ao povo preto espalhado por todo o mundo. O pan-africanismo não é coisa do passado e romantismo histórico. É um movimento consciente de um povo que reconhece seu grandioso poder de realização, sua grandiosa história de contribuição para a criação desenvolvimento das civilizações humanas. Encerro este artigo transpondo o pensamento de um dos maiores pensadores pan-africanos, Stanislas Adotevi, que destacava “que a particularidade negra é que, entre todos os explorados, os negros foram os mais explorados: o que o negro produz em seu trabalho reproduz a sociedade dos outros, mas não lhe é retribuído para viver plenamente sua dignidade (...). Não há como tratar de nenhuma particularidade negra fora desta particularidade histórica. Sendo a história e identidade do homens intrinsecamente vinculados, a identidade negra constrói-se historicamente, e historicamente deve ser compreendida.Contudo, os negros devem tornar-se sujeitos históricos que mudem o curso da história vivida, em que foram reduzidos a erro, objeto em processos de exploração e opressão que marcam sua particularidade. A única possibilidade que o negro tem é de ser ele para ele próprio, de adquirir sua identidade, que repousa na necessidade que tem de produzir os meios de realização de sua própria história.Ainda, acrescenta ele:” A posse de si, por si mesmo, que ele busca na particularidade, deve impulsioná-lo a exigir uma ação que coloque fim ao sistema histórico que o tem situado fora da história. O reconhecimento da identidade negra passa necessariamente pela reapropriação prática de sua essência de homem e, naturalmente, pela destruição do sistema que o tem negado enquanto homem... A tomada de consciência do negro deve significar uma mudança do curso das coisas. Uma nova interpretação da cultura. “Uma orientação nova da existência: uma revolta consciente”.

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